carnificina

Carnificina

Minha casa cheirava a crime quando acordei sobressaltada. Olhei o relógio e vi que eram duas e quarenta e cinco da manhã.
Me levantei, um tanto curiosa para descobrir que cheiro era aquele. Um cheiro metálico, um cheiro de morte invadia toda a minha casa. Tentei acender a luz, mas não obtive sucesso. 
- Droga! Estamos sem energia!
Falei, enquanto caminhava tateando as paredes até chegar à escada. No corredor, escorreguei e caí sentada em cima de algo gosmento e pegajoso que cheirava a sangue Já estava assustada por demais para ficar ali parada, mas curiosa por demais para tentar entender o que está acontecendo.
Me levantei e fui descendo às escadas devagar, segurando firme no corrimão
 para não escorregar em um líquido escorregadio e quente que entrava entre meus dedos conforme eu descia os degraus.
Porém, quando eu estava chegando no último degrau, pude ouvir na cozinha um barulho... Um barulho que parecia de... De carne sendo cortada, e depois, mastigada:
- Mãe? PaI? Tem alguém aí?
O barulho na cozinha parou após a minha pergunta.
 Meu coração disparou quando ouvi passos vindo em minha direção, mas senti alguém me puxar pela cintura:
- SHSHSHSHSHSHIIII...
Reconheci, era meu pai. Ele continuou a cochichar:
- Se esconda no banheiro, e não saia de lá por nada.
- Mas o que...
Tentei perguntar, mas ele pôs a mão em minha boca.
- Estão todos mortos, só restou eu e você. Agora vá!
Corri para o banheiro, e no meio da correria, pude ouvir meu pai entrar em luta corporal com alguém, e depois, dar um gemido horrível de dor. Ouvi a carne dele sendo rasgada e entrei no banheiro, e antes de fechar a porta, eu olhei, e vi. Era um homem, agaxado como um cão, e ele comia a carne fresca de meu pai. Ele metia os dentes, puxava, sacudia a cabeça como um animal e arrancava grandes pedaços de carne.
 Fechei a porta do banheiro quando vi ele levantar a cabeça e olhar pra mim. A lua e algumas luzes de poste me permitia ver a sala da minha casa pintada de vermelho. Tive de seguir os conselhos de meu pai e me tranquei no banheiro.
Ouvi passos indo até lá. Ouvia o sangue fazer bolha nos pés dele conforme ele pisava, e ao chegar na frente da porta, ele parou.
Eu podia ouvir a respiração daquilo e ouvia claramente ele mastigando o resto de carne que ainda restara em sua boca. Pude ver a sombra dos pés dele por baixo da porta e me afastei, esperando pelo pior.
Aquilo começou então, depois de uns dois minutos de silêncio perturbador, a sacudir a porta do banheiro. A resistente porta do banheiro começou a chacoalhar, parecendo que cairia a qualquer momento. Então, pensei: "Se o que quer que esteja lá fora e que devorou toda a minha família consegue sacudir uma porta grossa dessas, não vai demorar muito e eu estarei derretendo no estômago desta criatura"
Ele era uma espécie de primata, com longos braços e uma língua preta e gosmenta que se arrastava por baixo da porta a minha procura.
Subi no vaso e esperei. A porta deu mais uma sacudida forte, e aquilo começou a soltar grunhidos e a arranhar a porta, raspar forte, como se ele tivesse garras gigantes que arrancaria lasca por lasca da madeira resistente, e dali eu não escaparia.
Tive então, uma única ideia, que me parecia inútil mas eu precisava tentar. Tirei o suporte da cortina do box e mantive firme em minhas mãos aquele longo bastão. Se aquilo entrasse, eu lutaria com ele, mesmo que eu perdesse minha vida, mas eu tentaria lutar.
Um estrondo então foi ouvido na porta, e uma pelota grande da madeira voou na parede atrás de mim. Aquilo colocou a sua enorme mão sangrenta para dentro tentando me pegar, mas eu bati com o bastão em sua mão, mas o que ele fez foi surpreendente. Ele enfiou o dente no bastão e arrancou um grande pedaço, cuspindo-o para longe.
Joguei o bastão para trás de mim enquanto ouvia o sangue pingando das mãos daquele ser horrendo de rosto deformado, olhos gigante e boca rasgada que estava com sede de minha carne.
Bati com o pedaço do bastão no espelho, e com um pedaço do vidro, cortei sua mão. A criatura pareceu sentir dor e se afastou da porta por um instante. Foi tempo o suficiente pra eu tentar quebrar a janela do banheiro e sair daquele inferno.
Eu estava quase conseguindo arrancar a janela quando ouve-se um estrondo na porta e eu senti um peso em cima de mim. O monstro havia conseguido derrubar a porta e estava em cima dela, me esmagando. Arranjei forças sabe-se lá deus de onde e empurrei a grande madeira que antes era a porta do banheiro, ficando agora eu por cima e ele por baixo. Isso durou alguns segundos até ele empurrar a madeira com força e eu bater com força na parede. Chutei a porta que voltou a cair em cima dele e escalei a janela. Ele empurrou a porta de volta e esta bateu com tanta força em minha perna que me paralisou. Senti a mão gosmenta da criatura agarrar minha perna e levá-la até sua boca, mas usei o outro pé para chutar aquela criatura infernal, e então, sentir meu corpo em queda livre.
Caí no arbusto que tinha ao redor de minha casa, e eu não sabia fazer outra coisa a não ser correr muito e gritar por socorro.
Ninguém me ouvia. Pulei a janela da casa de uma vizinha e caí em cima do corpo sem vida dela na cama. Andei pela casa dela e vi a metade do corpo de seu bebê jogado no meio da sala, e em um outro quarto, chorava a filha mais velha do casal. Fui até o choro, e chutei a cabeça do pai dela que estava no caminho. Laura tinha apenas três anos  de idade, e alguém tentou salvar sua vida trancando-a naquele quartinho assim como meu pai fez comigo:
- Laura, sou eu a tia Gabi, eu vou te salvar, tá ok?
Peguei um machado que o pai da pobre garota provavelmente usou para tentar lutar com aquele monstro e consegui quebrar a porta, e entrei, tomando a pobre criança em meus braços:
- Laura, você tá bem?
Ela apenas balançou a cabeça, e agora soluçava baixinho:
- Estão mortos. Eles estão mortos.
Choramingou a pobre criança:
- Psiu... Calma, olha só. Eles estão mortos, mas nós não remos morrer, tá ok? Nós não iremos morrer.
Ouvimos então, a porta da casa ranger lentamente. Ouvimos passos e a respiração peculiar daquilo que tanto eu quanto Laura, mesmo com sua pouca idade, já conhecia. Tapei a boca da menina, abri a janela e perguntei:
- Consegue pular?
Ela fez que sim:
- Não é muito alto, você não vai se machucar. Pula e corre, eu te encontrarei lá embaixo.
Ajudei a menina a pular a janela e estava vendo como eu passaria. Laura era magra
 e seu corpo passou facilmente entre as grades, mas... E eu? 
Os passos do carnívoro estavam na sala da casa a nos cassar. Olhei pela janela e vi Laura fazendo sinal para eu pular também, e eu senti vontade de chorar, tamanha era a inocência da criança.
Saí do quarto e saí pela porta dos fundos, enquanto ouvia os passos pesados da criatura carnívora entrando no quarto a me procurar. Encontrei Laura na parte de trás da casa, e segurando em sua mãozinha, corremos pelo bosque escuro.
- Tia, o que que está acontecendo? Por que ele mata as pessoas?
Perguntou Laurinha, mas eu não tinha respostas para a sua pergunta, pergunta esta a qual eu também queria respostas.
Ouvimos então, uma respiração grossa e pesada atrás de nós. Me contive para não gritar ao ver um grande animal negro de olhos vermelhos que se aproximava. O mais estranho disso tudo, é que Laura não parecia ter medo daquele animal que era umas vinte vezes maior que ela:
- É meu avô, ele vai nos salvar.
O grande amimal que estava andando de pé como um homem, agora estava de quatro, e se aproximou de Laurinha e lambeu carinhosamente os pés dela. Eu não podia negar que agora, quem estava nervosa era eu:
- O que está acontecendo aqui, Laura?
- meu avó disse que ele é um cachorrão do bem, e que sempre me protegeria do perigo. Ele me ensinou uma reza e disse pra eu sempre rezar assim quando eu precisasse dele.
Disse a menininha, acariciando a cabeça daquele enorme cachorro. Aquilo era um lobisomem! Era para nós estar mortas naquele momento, mas não! Estávamos vivas, e eu decidi então, depositar minha confiança naquela criança, mesmo achando aquilo tudo muito estranho.
Foi quando que, por de trás das sombras surgiu o carnívoro, segurando Laura pelo pescoço. Aquele enorme cachorro negro então, saltou na criatura e a segurou com dentes e garras em seu pescoço, fazendo o carnívoro largar Laura ao chão. Peguei na mão da menina e verifiquei se ela estava bem, e sim, ela estava.
O primata carnívoro e o lobisomem estavam numa briga horrível. A criatura arrancava lascas do coro do lobisomem, e o lobisomem arrancava pedaços do corpo dele, mas o pobre do lobisomem estava em desvantagem. Ele sangrava, e aos poucos ficava fraco.
Foi quando os primeiros raios solares começaram a aparecer no céu, e a criatura carnívora se transformou numa fumaça e sumiu, enquanto gemidos horríveis saíram da boca do lobisomem que se contorcia no chão, rolava e aos poucos voltava a forma humana.
Pude reconhecer então, o seu Severino, um senhor muito simpático que era avô de Laura.

A  menina chorou ao ver seu avô ali, muito ferido:
 -Seu Severino, o senhor precisa ir ao hospital. O que está acontecendo?
Agonizando, o homem disse:
- Ele é... O carnívoro das trevas. Ele aparece só durante à noite para devorar carne e ele vai voltar.
 Cuide da Laurinha pra mim. Saia daqui e vá pra cidade, porque o Carnívoro das trevas habita as matas.
E aos dizer isso, seu Severino deu um último suspiro e faleceu bem a nossa frente.
Abracei Laura que chorava por demais, tentando acordar o seu avô.
 A acalmei, fui até a casa dela e pedi para que ela me esperasse do lado de fora para que ela não visse a carnificina que virou a casa dela. Arrumei algumas roupinhas dela, e na minha casa, arrumei alguma de minhas roupas e saí com Laura dali.
Entrei com a papelada de adoção, e agora, eu e Laura estava em uma casa nova, de frente para o mar:
- Vamos morar aqui?
Ela me perguntou:
- Sim. Agora, somos só nós duas. 
- Você vai me dar um irmão? Porque o meu irmãozinho também estava morto.
Segurei-me para não chorar:
- Querida, nossas vidas estão começando agora, e a partir de agora você poderá me chamar de mãe. Essa mãe um dia vai arrumar um pai pra você. Você vai pra escola e fará muitos amigos, e eu irei sim, te dar um irmãozinho.
E assim aconteceu. Laura foi para a escola. Arranjei um amor um ano depois, e quando Laura já tinha sete anos, eu estava grávida. Era um menino, e foi Laura quem escolheu o nome. Henrique. O nome de seu irmãozinho que não escapou das garras do carnívoro das trevas.

Thainá de Lima Costa

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